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De Esculápio a Hipócrates: o abandono do espírito pela medicina

E ao Corvo, que esperava um prêmio grande,

O lugar lhe vedou entre aves brancas.

(Ovídio)

Asclépio, também conhecido como Esculápio, foi quem trouxe aos homens aquele que é o símbolo da medicina: o caduceu. A clave e a serpente, que já foram tema de um post anterior (para ler clique aqui). A clave representa o reinado do espírito sobre o corpo, e a serpente que verte seu veneno na taça salutar, a transformação da causa de todo o mal em remédio, cura.


Asclépio é filho do deus Apolo, representante simbólico da harmonização da alma, ou ainda, da cura através do equilíbrio do psiquismo. Quer dizer que para os gregos o mito de Asclépio revelava a luta que eles travavam entre a banalização, traduzida pela exaltação do intelecto utilitário, e a sublimação, guiada pelo espírito divinizado. Ou seja, para os gregos era importante que as pessoas não exaltassem o intelecto em detrimento do equilíbrio emocional. Isto era o que eles consideravam a banalização da vida.


Segundo Joseph Campbell, todos os mitos foram concebidos para ajudar o homem a harmonizar a mente e o corpo. Este esforço seria uma forma de balizar a busca da felicidade – sentido último da vida –, pois evitaria que o homem se perdesse nos desejos exaltados e na culpabilização, fruto da banalização dos prazeres do corpo. Haveriam, assim, duas correntes conflitantes no homem: a busca da sublimação e a entrega à banalização. A sublimação estaria ligada às aspirações divinas, enquanto que a segunda, a banalização, atenderia às tendências titânicas da existência humana.


O mito de Asclépio revelará o início de uma era na medicina cujos desdobramentos reverberam até os dias de hoje, voltada mais à cura do corpo, através do uso utilitário do intelecto, do que à harmonização do psiquismo. Esta guinada que transformaria para sempre a arte da cura no ocidente é vista, sob a ótica da mitologia, como um esforço banalizado, ou em outras palavras, como um abandono dos princípios divinos que Apolo preconizava. Tudo isso está representado na história mítica de Asclépio.


Desde o seu nascimento, sua história revela os aspectos nefastos da exaltação dos desejos banalizados. Asclépio teria nascido do ventre de uma mulher morta. A história começa quando Apolo se apaixona por uma mortal, Corônis. A morte de Corônis teria sido causada pelo próprio Apolo ao descobrir que ela o havia traído, já grávida, com o jovem Ischys. Ao receber a notícia, trazida por seu corvo branco, Apolo amaldiçoa o corvo e tinge suas penas de preto, representando a culpabilidade do intelecto banalizado. Por sua vez, ao ceder ao desejo carnal banalizado, a mãe de Asclépio cela o seu destino. Apolo o envia para ser criado por Quíron, o centauro: criatura meio homem, meio cavalo. O simbolismo do homem-animal se traduz pela queda definitiva e incurável, e da impossibilidade da elevação da alma, ou seja, a existência de um psiquismo voltado unicamente a atender às necessidades do corpo.


Quíron era um mestre na arte da cura do corpo. Conta a lenda que ele ensinou sua arte para Asclépio. E teria sido desta forma que nasceu a medicina profana: inspirada por um princípio divino, simbolizado por Apolo, mas transmitida ao homem por uma criatura banal, o centauro.


Talvez seja possível afirmarmos que os gregos sabiam onde a história chegaria a partir do desenvolvimento das práticas médicas que eles estavam criando. Ao final de sua história, Asclépio ressuscita um cadáver, símbolo da vitória do intelecto utilitário sobre o espírito. Como punição, ele é fulminado pelo raio de Zeus, ou seja, é destruído pelo espírito. O simbolismo por trás deste fim trágico mostra a falibilidade de uma medicina que negligenciou, por muito tempo, a importância do funcionamento psíquico em favor da supervalorização do funcionamento orgânico.

Este fim mítico previsto pelos gregos é bastante claro nas palavras de Paul Diel, quando ele compara as iniciativas frustradas da psiquiatria moderna até o surgimento da psicanálise:


“Até nossos dias, o espírito que anima a ciência psiquiátrica tem-se mostrado muito mais restritivo do que jamais foi o da sabedoria mítica. Não que a psiquiatria negue a unidade “corpo-psique”, ao contrário, ela assinala tanto quanto se pode fazê-lo, mas unicamente na esperança de compreender os distúrbios da alma pelo estudo exclusivo do desregramento somático. A psicanálise moderna, abrindo caminho em direção à compreensão do simbolismo mítico, pode ser considerada como uma reação a essa limitação excessiva do problema psicopatológico.”


A evolução da medicina segue o ideal asclepíade, pois a evolução representa um dos ideais do espírito, mas a posterior intensificação da primazia técnica, tecnológica e corporal explica como o destino prefigurado da medicina é consonante ao destino de Asclépio; assim como todo herói decadente, ele também está fadado a perecer, o que significa para o mito a morte da alma. Uma evidência da "banalização" da medicina moderna pode ser encontrada na obra de Jean Clavreul, quando ele demonstra como este método de medicar encontra no doente não um ser humano total, mas um mecanismo a ser reparado, representado a partir da doença: “o homem se define como constituído pelo doente do qual a doença teria sido retirada: homem = doente – doença”, diz o autor. O que diferenciaria a medicina profana da medicina moderna seria a profundidade das observações e o sucesso das experiências. No entanto, a prática segue essencialmente os mesmos princípios, e fundamentalmente, a ética permanece inalterada.


Sob a ótica da riqueza mítica, pouco importa se Asclépio foi um homem real ou uma personagem mitológica, pois a riqueza simbólica de sua história permanece viva. Da mesma maneira, o Asclépio mítico, ao contrário do homem, jamais morrerá. A mesma análise se revela rica quando falamos sobre a abordagem mítica da figura do pai da medicina, Hipócrates. Questionar se Hipócrates foi um homem de fato, que nasceu em Cós no ano de 460 a.C. e morreu em 370 a.C., ou uma figura lendária, é preocupar-se com um problema de pouca importância. Entretanto, para a medicina de hoje parece relevante informar que Hipócrates foi uma figura histórica. De fato, para uma ciência histórica fica inviável escolher um ‘pai da medicina’ que não tenha sido um homem real, pois a compreensão da história, assim como a nossa medicina, segue o ideal da razão, e o mito não. Para os historiadores da medicina moderna Hipócrates representa um excelente ponto de partida, dado que se apresenta à razão através de evidências que parecem garantir sua existência humana, pertencente a um lugar e a um tempo que podem ser identificados historicamente.


Se a razão não pertence ao domínio da narrativa mítica, nenhuma história racional poderia circunscrever um Hipócrates mitológico, e a passagem do mito para a razão seria equivalente à passagem do símbolo mítico, sejam divindades, monstros ou heróis, para as figuras históricas, tal como parece ser o nosso Hipócrates. Entretanto, etimologicamente, a origem grega do nome do pai da medicina revela este princípio asclepíade/quirônico presente na transformação que ele trouxe para a arte da cura. Afinal de contas, seria negligente não ressaltar que o seu nome deriva dos radicais "Hippos", que quer dizer cavalo, e "Kratos", que quer dizer força ou domínio. Desta forma, fica a pergunta: seria Hipócrates mais um representante simbólico do "governo" do "corpo-cavalo" no desenvolvimento da medicina?

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