O “Manuscrito inédito de 1931” de Freud: o retorno de um recalcado
No último sábado foi oficialmente lançado, na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, o “Manuscrito inédito de 1931” de Sigmund Freud, livro organizado por Alexandre Socha, psicanalista da SBPSP, e editado pela Blucher editora. O lançamento aconteceu em um evento que contou com a presença de Elsa Vera Kunze Post Susemihl, quem cuidou da primorosa tradução do texto original, em alemão, Luís Carlos Menezes, que escreve o posfácio do livro, e Renato Mezan, que brindou a plateia com uma primorosa explanação do contexto histórico que inspirou e deu origem ao manuscrito perdido do pai da psicanálise.
Trata-se de uma obra introdutória à psicanálise, escrita por Freud para leigos, e sobretudo voltada para o público norte-americano. No manuscrito original Freud apresenta as três teorias fundamentais da Psicanálise de maneira clara, direta e didática.
O manuscrito inédito é, na verdade, o primeiro capítulo de uma obra escrita em parceria com o amigo William C. Bullitt, que foi embaixador dos Estados Unidos em vários países importantes da Europa, e que junto com Marie Bonaparte ajudou Freud a escapar dos nazistas. O texto compunha o primeiro capítulo de um livro quase todo escrito por Bullitt sobre o presidente americano Thomas Woodrow Wilson, que governou o país de 1913 a 1921 e conduziu parca e desastrosamente as negociações do tratado de Versalhes, ao fim da I Guerra Mundial. Este livro pretendia ser um estudo de caso psicológico sobre o desastrado presidente, mas só chegou a ser publicado em 1966. O motivo teria sido uma série de desencontros entre Freud e Bullitt, mas acima de tudo, por conta de discordâncias que ambos mantinham acerca das reflexões científicas que Freud faz sobre o Cristo e o cristianismo, no texto do primeiro capítulo.
Contudo, a riqueza do exemplar recentemente lançado consiste no fato de que o texto está mais completo do que aquele lançado em 1966, além da apresentação da análise inédita do simbolismo da figura de Cristo à luz da teoria psicanalítica, encerrando o esforço que o cristianismo empregou com o fim de resolver a questão da culpa inconsciente. Podemos afirmar também que o manuscrito se apresenta como uma alternativa didática para uma nova trajetória de apresentação da Psicanálise em cursos introdutórios desta disciplina. Além disso, o prefácio e o posfácio coroam a edição, tanto pelo rico e delicioso recorte histórico que contextualiza o nascimento do projeto comum a Freud e Bullitt, apresentado por Socha no início do livro, quanto pela pesquisa textual de Menezes, que aponta as diferenças entre o artigo de 1966 e o atual.
Mas as perguntas que emergem diante da qualidade e utilidade do manuscrito para o estudo e divulgação da Psicanálise é como um texto desses ficou tanto tempo desaparecido? E porque ressurgiu justamente agora? Talvez não nos seja possível encontrar a resposta à primeira pergunta, mas certamente cumpre-nos admitir que possivelmente o acaso não tenha exercido uma função assim tão primordial no que diz respeito ao ressurgimento do texto, como parece querer acreditar o organizador do livro, logo na frase inaugural da publicação. Acontece que as linhas do Inconsciente revelam uma coerência que quase sempre escapa ao primeiro olhar, pois é sempre através das entrelinhas dos atos falhos ou sonhos que ele retorna, revelando o afeto recalcado. O livro, assim como o texto do Freud, desafiador e revelador das vicissitudes de uma época que, de maneira semelhante à nossa, foi sendo marcada pelo conservadorismo, pelos fascismos, pela militarização das nações e pela tensão psicótica entre os povos, ressurge como o retorno do recalcado, libertando as mentes e os corações para o pensamento livre, fruto do eterno movimento do desejo humano.